Primavera
ADÁGIO
Tão curta a vida e tão comprido o tempo!...
Feliz quem o não sente.
Quem respira tão fundo
O ar do mundo,
Que vive em cada instante eternamente.
Miguel Torga
domingo, 27 de junho de 2010
Cegueira Bendita
Ando perdida nestes sonhos verdes
De ter nascido e não saber quem sou,
Ando ceguinha a tatear paredes
E nem ao menos sei quem me cegou!
Não vejo nada, tudo é morto e vago...
E a minha alma cega, ao abandono
Faz-me lembrar o nenúfar dum lago
´Stendendo as asas brancas cor do sonho...
Ter dentro d´alma na luz de todo o mundo
E não ver nada nesse mar sem fundo,
Poetas meus irmãos, que triste sorte!...
E chamam-nos a nós Iluminados!
Pobres cegos sem culpas, sem pecados,
A sofrer pelos outros té à morte!
Florbela Espanca, in "A Mensageira das Violetas"
De ter nascido e não saber quem sou,
Ando ceguinha a tatear paredes
E nem ao menos sei quem me cegou!
Não vejo nada, tudo é morto e vago...
E a minha alma cega, ao abandono
Faz-me lembrar o nenúfar dum lago
´Stendendo as asas brancas cor do sonho...
Ter dentro d´alma na luz de todo o mundo
E não ver nada nesse mar sem fundo,
Poetas meus irmãos, que triste sorte!...
E chamam-nos a nós Iluminados!
Pobres cegos sem culpas, sem pecados,
A sofrer pelos outros té à morte!
Florbela Espanca, in "A Mensageira das Violetas"
domingo, 20 de junho de 2010
As Palavras
As palavras são boas. As palavras são más. As palavras ofendem. As palavras pedem desculpas. As palavras queimam. As palavras acariciam. As palavras são dadas, trocadas, oferecidas, vendidas e inventadas. As palavras estão ausentes.
Algumas palavras sugam-nos, não nos largam... As palavras aconselham, sugerem, insinuam, ordenam, impõem, segregam, eliminam. São melífluas ou azedas. O mundo gira sobre palavras lubrificadas com óleo de paciência. Os cérebros estão cheios de palavras que vivem em boa paz com as suas contrárias e inimigas. Por isso as pessoas fazem o contrário do que pensam, julgando pensar o que fazem. Há muitas palavras. E há os discursos, que são palavras encostadas umas às outras, em equilíbrio instável graças a uma precária sintaxe, até ao prego final do disse ou tenho dito. Com discursos se comemora, se inaugura, se abrem e fecham sessões, se lançam cortinas de fumo ou dispõem bambinelas de veludo. São brindes, orações, palestras e conferências. Pelos discursos se transmitem louvores, agradecimentos, programas e fantasias. E depois as palavras dos discursos aparecem deitadas em papéis, são pintadas de tinta de impressão - e por essa via entram na imortalidade do verbo. E as palavras escorrem tão fluídas como o "precioso líquido". Escorrem interminavelmente, alagam o chão, sobem aos joelhos, chegam à cintura, aos ombros, ao pescoço. É o dilúvio universal, um coro desafinado que jorra de milhões de bocas. A terra segue o seu caminho envolta num clamor de loucos, aos gritos, aos uivos, envoltos também num murmúrio manso, represo e conciliador... E tudo isso atordoa as estrelas e perturba as comunicações, como as tempestades solares. Porque as palavras deixaram de comunicar. Cada palavra é dita para que se não ouça outra palavra. A palavra, mesmo quando não afirma, afirma-se. A palavra não responde nem pergunta: amassa. A palavra é a erva fresca e verde que cobre os dentes do pântano. A palavra é poeira nos olhos e olhos furados. A palavra não mostra. A palavra disfarça. Daí que seja urgente moldar as palavras para que a sementeira se mude em Seara. Daí que as palavras sejam instrumento de morte - ou de salvação. Daí que a palavra só valha o que valer o silêncio do acto. Há também o silêncio.
O silêncio, por definição, é o que não se ouve. O silêncio escuta, examina, observa, pesa e analisa. O silêncio é fecundo. O silêncio é a terra negra e fértil, o húmus do ser, a melodia calada sob a luz solar. Caem sobre ele as palavras. Todas as palavras. As palavras boas e as más. O trigo e o joio.
Mas só o trigo dá pão.
José Saramago
Algumas palavras sugam-nos, não nos largam... As palavras aconselham, sugerem, insinuam, ordenam, impõem, segregam, eliminam. São melífluas ou azedas. O mundo gira sobre palavras lubrificadas com óleo de paciência. Os cérebros estão cheios de palavras que vivem em boa paz com as suas contrárias e inimigas. Por isso as pessoas fazem o contrário do que pensam, julgando pensar o que fazem. Há muitas palavras. E há os discursos, que são palavras encostadas umas às outras, em equilíbrio instável graças a uma precária sintaxe, até ao prego final do disse ou tenho dito. Com discursos se comemora, se inaugura, se abrem e fecham sessões, se lançam cortinas de fumo ou dispõem bambinelas de veludo. São brindes, orações, palestras e conferências. Pelos discursos se transmitem louvores, agradecimentos, programas e fantasias. E depois as palavras dos discursos aparecem deitadas em papéis, são pintadas de tinta de impressão - e por essa via entram na imortalidade do verbo. E as palavras escorrem tão fluídas como o "precioso líquido". Escorrem interminavelmente, alagam o chão, sobem aos joelhos, chegam à cintura, aos ombros, ao pescoço. É o dilúvio universal, um coro desafinado que jorra de milhões de bocas. A terra segue o seu caminho envolta num clamor de loucos, aos gritos, aos uivos, envoltos também num murmúrio manso, represo e conciliador... E tudo isso atordoa as estrelas e perturba as comunicações, como as tempestades solares. Porque as palavras deixaram de comunicar. Cada palavra é dita para que se não ouça outra palavra. A palavra, mesmo quando não afirma, afirma-se. A palavra não responde nem pergunta: amassa. A palavra é a erva fresca e verde que cobre os dentes do pântano. A palavra é poeira nos olhos e olhos furados. A palavra não mostra. A palavra disfarça. Daí que seja urgente moldar as palavras para que a sementeira se mude em Seara. Daí que as palavras sejam instrumento de morte - ou de salvação. Daí que a palavra só valha o que valer o silêncio do acto. Há também o silêncio.
O silêncio, por definição, é o que não se ouve. O silêncio escuta, examina, observa, pesa e analisa. O silêncio é fecundo. O silêncio é a terra negra e fértil, o húmus do ser, a melodia calada sob a luz solar. Caem sobre ele as palavras. Todas as palavras. As palavras boas e as más. O trigo e o joio.
Mas só o trigo dá pão.
José Saramago
La virgule de José Saramago
La virgule de José Saramago
pour Le Monde.fr 18.06.10 17h55 • Mis à jour le 19.06.10 17h16
"J'écrivais un roman comme les autres, avait-il expliqué au "Monde des Livres" du 17 mars 2000. Tout à coup, à la page 24 ou 25, sans y penser, sans réfléchir, sans prendre de décision, j'ai commencé à écrire avec ce qui est devenu ma façon personnelle de raconter, cette fusion du style direct et indirect, cette abolition de la ponctuation réduite au point et à la virgule. Je crois que ce style ne serait pas né si le livre n'était pas parti de quelque chose que j'avais écouté. Il fallait trouver un ton, une façon de transcrire le rythme, la musique de la parole qu'on dit, pas de celle qu'on écrit. Ensuite, j'ai repris les vingt premières pages pour les réécrire."
Après un premier essai infructueux, à la fin des années 1940, et un deuxième roman au milieu des années 1970, c'est avec Levantado do Chao (Soulevé de la terre, non traduit en français), qu'il trouve sa forme, au début des années 1980.
La clé du style de cet ancien serrurier est celle-ci : les dialogues chez Saramago se fondent dans un bloc de prose compacte. Ils sont introduits par une virgule, suivie d'une majuscule qui signale le changement de locuteurs. Cela donne des grands romans polyphoniques, labyrinthiques, comme Le Dieu Manchot (éd. Albin-Michel), L'Année de la mort de Ricardo Reis ou Histoire du siège de Lisbonne (éd. Seuil).
ART NARRATIF TOUT EN CIRCONVOLUTIONS
Les voix s'y entremêlent, les romans ressemblent à des opéras. Les voix des personnages se superposent et sont entrecoupées par celle du romancier omniscient, souvent ironique, quand ce n'est pas par celle de Dieu lui-même, dans L'Evangile selon Jésus-Christ (éd. Seuil). "Dans les divers arts, et principalement dans l'art d'écrire, le meilleur chemin entre deux points mêmes proches n'a jamais été, ne sera jamais et n'est pas la ligne droite", écrit-il dans Le Radeau de pierre.
Parce qu'il a mis du temps à le forger, Saramago manie avec aisance un art narratif tout en circonvolutions qu'il appuie sur une idée romanesque, dont il file la métaphore jusqu'au bout. "J'ai besoin d'entendre une voix qui dit ce que je suis en train d'écrire, alors le moteur commence à fonctionner, sinon ça n'avance pas. J'ai aussi besoin d'une idée forte. Je peux attendre trois semaines ou trois mois, il y a des pensées qui flottent et je rencontre l'idée que j'attendais, je le sais immédiatement", expliquait-il.
C'est ainsi que l'intervention d'un correcteur modifie le cours du siège de Lisbonne (Histoire du siège de Lisbonne) ; la péninsule ibérique se détache de l'Europe pour devenir une île (Le Radeau de pierre) ; Joseph, hanté par le massacre des innocents, se suicide (L'Evangile selon Jésus-Christ) ; un matin, tout le monde (ou presque) se réveille aveugle (L'Aveuglement). Chez Saramago, les idées (parfois un peu trop appuyées) font toujours la part belle à une riche imagination.
Alain Salles
pour Le Monde.fr 18.06.10 17h55 • Mis à jour le 19.06.10 17h16
"J'écrivais un roman comme les autres, avait-il expliqué au "Monde des Livres" du 17 mars 2000. Tout à coup, à la page 24 ou 25, sans y penser, sans réfléchir, sans prendre de décision, j'ai commencé à écrire avec ce qui est devenu ma façon personnelle de raconter, cette fusion du style direct et indirect, cette abolition de la ponctuation réduite au point et à la virgule. Je crois que ce style ne serait pas né si le livre n'était pas parti de quelque chose que j'avais écouté. Il fallait trouver un ton, une façon de transcrire le rythme, la musique de la parole qu'on dit, pas de celle qu'on écrit. Ensuite, j'ai repris les vingt premières pages pour les réécrire."
Après un premier essai infructueux, à la fin des années 1940, et un deuxième roman au milieu des années 1970, c'est avec Levantado do Chao (Soulevé de la terre, non traduit en français), qu'il trouve sa forme, au début des années 1980.
La clé du style de cet ancien serrurier est celle-ci : les dialogues chez Saramago se fondent dans un bloc de prose compacte. Ils sont introduits par une virgule, suivie d'une majuscule qui signale le changement de locuteurs. Cela donne des grands romans polyphoniques, labyrinthiques, comme Le Dieu Manchot (éd. Albin-Michel), L'Année de la mort de Ricardo Reis ou Histoire du siège de Lisbonne (éd. Seuil).
ART NARRATIF TOUT EN CIRCONVOLUTIONS
Les voix s'y entremêlent, les romans ressemblent à des opéras. Les voix des personnages se superposent et sont entrecoupées par celle du romancier omniscient, souvent ironique, quand ce n'est pas par celle de Dieu lui-même, dans L'Evangile selon Jésus-Christ (éd. Seuil). "Dans les divers arts, et principalement dans l'art d'écrire, le meilleur chemin entre deux points mêmes proches n'a jamais été, ne sera jamais et n'est pas la ligne droite", écrit-il dans Le Radeau de pierre.
Parce qu'il a mis du temps à le forger, Saramago manie avec aisance un art narratif tout en circonvolutions qu'il appuie sur une idée romanesque, dont il file la métaphore jusqu'au bout. "J'ai besoin d'entendre une voix qui dit ce que je suis en train d'écrire, alors le moteur commence à fonctionner, sinon ça n'avance pas. J'ai aussi besoin d'une idée forte. Je peux attendre trois semaines ou trois mois, il y a des pensées qui flottent et je rencontre l'idée que j'attendais, je le sais immédiatement", expliquait-il.
C'est ainsi que l'intervention d'un correcteur modifie le cours du siège de Lisbonne (Histoire du siège de Lisbonne) ; la péninsule ibérique se détache de l'Europe pour devenir une île (Le Radeau de pierre) ; Joseph, hanté par le massacre des innocents, se suicide (L'Evangile selon Jésus-Christ) ; un matin, tout le monde (ou presque) se réveille aveugle (L'Aveuglement). Chez Saramago, les idées (parfois un peu trop appuyées) font toujours la part belle à une riche imagination.
Alain Salles
sábado, 19 de junho de 2010
Mia Couto em Vila Nova de Famalicão
Foi um Mia Couto tímido, simples e verdadeiro, que se apresentou a uma pequena assistência, na Biblioteca Municipal de Vila Nova de Famalicão, ontem à noite.
Começou por falar de José Saramago, homenageando-o, e seguiu ao sabor das perguntas dos admiradores (admiradoras em maior número...) da sua escrita.
Mais uma vez, o que inferi da noite de ontem, foi que os escritores se estão nas tintas para as catalogações e rótulos literários que lhe são postos a eles e às suas obras.
"Escrevo para ser feliz", ouvi-o eu declarar por diversas vezes!
Viva a escrita livre e feliz!
Adágio
Passado, Presente, Futuro
Eu fui. Mas o que fui já me não lembra:
Mil camadas de pó disfarçam, véus,
Estes quarenta rostos desiguais.
Tão marcados de tempo e macaréus.
Eu sou. Mas o que sou tão pouco é:
Rã fugida do charco, que saltou,
E no salto que deu, quanto podia,
O ar dum outro mundo a rebentou.
Falta ver, se é que falta, o que serei:
Um rosto recomposto antes do fim,
Um canto de batráquio, mesmo rouco,
Uma vida que corra assim-assim.
José Saramago, in "Os Poemas Possíveis"
Mil camadas de pó disfarçam, véus,
Estes quarenta rostos desiguais.
Tão marcados de tempo e macaréus.
Eu sou. Mas o que sou tão pouco é:
Rã fugida do charco, que saltou,
E no salto que deu, quanto podia,
O ar dum outro mundo a rebentou.
Falta ver, se é que falta, o que serei:
Um rosto recomposto antes do fim,
Um canto de batráquio, mesmo rouco,
Uma vida que corra assim-assim.
José Saramago, in "Os Poemas Possíveis"
Universalidade...
Os génios são espíritos demasiado espaçosos para caberem num país, numa nação, numa cultura... São espíritos livres que não obedecem a fronteira alguma, já que falam do ser humano, mexendo com a consciência de cada um!
Sorte teve Portugal deste homem ter nascido em terras lusas e ter usado o nosso idioma para exteriorizar, com maestria, o seu pensamento!
Camilo Castelo Branco, Eça de Queirós, Florbela Espanca, Fernando Pessoa, Natália Correia, Cesariny, Jorge de Sena, Alexandre O’Neil, Miguel Torga, …, Ademar Santos, José Saramago são apenas alguns dos nomes entre milhares, cuja nacionalidade pouco importou porque lhe bastou a ESCRITA!
Sorte teve Portugal deste homem ter nascido em terras lusas e ter usado o nosso idioma para exteriorizar, com maestria, o seu pensamento!
Camilo Castelo Branco, Eça de Queirós, Florbela Espanca, Fernando Pessoa, Natália Correia, Cesariny, Jorge de Sena, Alexandre O’Neil, Miguel Torga, …, Ademar Santos, José Saramago são apenas alguns dos nomes entre milhares, cuja nacionalidade pouco importou porque lhe bastou a ESCRITA!
Só os insignificantes não levantam vozes insultuosas, poeirentas e dísparas...
Adágio
quinta-feira, 17 de junho de 2010
Amor
A jovem deusa passa
Com véus discretos sobre a virgindade;
Olha e não olha, como a mocidade;
E um jovem deus pressente aquela graça.
Depois, a vide do desejo enlaça
Numa só volta a dupla divindade;
E os jovens deuses abrem-se à verdade,
Sedentos de beber na mesma taça.
É um vinho amargo que lhes cresta a boca;
Um condão vago que os desperta e toca
De humana e dolorosa consciência.
E abraçam-se de novo, já sem asas.
Homens apenas. Vivos como brasas,
A queimar o que resta da inocência.
Miguel Torga, in 'Libertação'
Com véus discretos sobre a virgindade;
Olha e não olha, como a mocidade;
E um jovem deus pressente aquela graça.
Depois, a vide do desejo enlaça
Numa só volta a dupla divindade;
E os jovens deuses abrem-se à verdade,
Sedentos de beber na mesma taça.
É um vinho amargo que lhes cresta a boca;
Um condão vago que os desperta e toca
De humana e dolorosa consciência.
E abraçam-se de novo, já sem asas.
Homens apenas. Vivos como brasas,
A queimar o que resta da inocência.
Miguel Torga, in 'Libertação'
domingo, 13 de junho de 2010
sábado, 12 de junho de 2010
Tu e Eu Meu Amor
Tu e eu meu amor
meu amor eu e tu
que o amor meu amor
é o nu contra o nu.
Nua a mão que segura
outra mão que lhe é dada
nua a suave ternura
na face apaixonada
nua a estrela mais pura
nos olhos da amada
nua a ânsia insegura
de uma boca beijada.
Tu e eu meu amor
meu amor eu e tu
que o amor meu amor
é o nu contra o nu.
Nu o riso e o prazer
como é nua a sentida
lágrima de não ver
na face dolorida
nu o corpo do ser
na hora prometida
meu amor que ao nascer
nus viemos à vida.
Tu e eu meu amor
meu amor eu e tu
que o amor meu amor
é o nu contra o nu.
Nua nua a verdade
tão forte no criar
adulta humanidade
nu o querer e o lutar
dia a dia pelo que há-de
os homens libertar
amor que a eternidade
é ser livre e amar.
Tu e eu meu amor
meu amor eu e tu
que o amor meu amor
é o nu contra o nu.
Manuel da Fonseca, in "Poemas para Adriano"
meu amor eu e tu
que o amor meu amor
é o nu contra o nu.
Nua a mão que segura
outra mão que lhe é dada
nua a suave ternura
na face apaixonada
nua a estrela mais pura
nos olhos da amada
nua a ânsia insegura
de uma boca beijada.
Tu e eu meu amor
meu amor eu e tu
que o amor meu amor
é o nu contra o nu.
Nu o riso e o prazer
como é nua a sentida
lágrima de não ver
na face dolorida
nu o corpo do ser
na hora prometida
meu amor que ao nascer
nus viemos à vida.
Tu e eu meu amor
meu amor eu e tu
que o amor meu amor
é o nu contra o nu.
Nua nua a verdade
tão forte no criar
adulta humanidade
nu o querer e o lutar
dia a dia pelo que há-de
os homens libertar
amor que a eternidade
é ser livre e amar.
Tu e eu meu amor
meu amor eu e tu
que o amor meu amor
é o nu contra o nu.
Manuel da Fonseca, in "Poemas para Adriano"
quinta-feira, 10 de junho de 2010
Portugal
Ó Portugal, se fosses só três sílabas,
linda vista para o mar,
Minho verde, Algarve de cal,
jerico rapando o espinhaço da terra,
surdo e miudinho,
moinho a braços com um vento
testarudo, mas embolado e, afinal, amigo,
se fosses só o sal, o sol, o sul,
o ladino pardal,
o manso boi coloquial,
a rechinante sardinha,
a desancada varina,
o plumitivo ladrilhado de lindos adjectivos,
a muda queixa amendoada
duns olhos pestanítidos,
se fosses só a cegarrega do estio, dos estilos,
o ferrugento cão asmático das praias,
o grilo engaiolado, a grila no lábio,
o calendário na parede, o emblema na lapela,
ó Portugal, se fosses só três sílabas
de plástico, que era mais barato!
*
Doceiras de Amarante, barristas de Barcelos,
rendeiras de Viana, toureiros da Golegã,
não há "papo-de-anjo" que seja o meu derriço,
galo que cante a cores na minha prateleira,
alvura arrendada para ó meu devaneio,
bandarilha que possa enfeitar-me o cachaço.
Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo,
golpe até ao osso, fome sem entretém,
perdigueiro marrado e sem narizes, sem perdizes,
rocim engraxado,
feira cabisbaixa,
meu remorso,
meu remorso de todos nós...
Alexandre O'Neil
sábado, 5 de junho de 2010
Príncipe
Príncipe:
Era de noite quando eu bati à tua porta
e na escuridão da tua casa tu vieste abrir
e não me conheceste.
Era de noite
são mil e umas
as noites em que bato à tua porta
e tu vens abrir
e não me reconheces
porque eu jamais bato à tua porta.
Contudo
quando eu batia à tua porta
e tu vieste abrir
os teus olhos de repente
viram-me
pela primeira vez
como sempre de cada vez é a primeira
a derradeira
instância do momento de eu surgir
e tu veres-me.
Era de noite quando eu bati à tua porta
e tu vieste abrir
e viste-me
como um náufrago sussurrando qualquer coisa
que ninguém compreendeu.
Mas era de noite
e por isso
tu soubeste que era eu
e vieste abrir-te
na escuridão da tua casa.
Ah era de noite
e de súbito tudo era apenas
lábios pálpebras intumescências
cobrindo o corpo de flutuantes volteios
de palpitações trémulas adejando pelo rosto.
Beijava os teus olhos por dentro
beijava os teus olhos pensados
beijava-te pensando
e estendia a mão sobre o meu pensamento
corria para ti
minha praia jamais alcançada
impossibilidade desejada
de apenas poder pensar-te.
São mil e umas
as noites em que não bato à tua porta
e vens abrir-me
Ana Hatherly, in "Um Calculador de Improbabilidades"
Era de noite quando eu bati à tua porta
e na escuridão da tua casa tu vieste abrir
e não me conheceste.
Era de noite
são mil e umas
as noites em que bato à tua porta
e tu vens abrir
e não me reconheces
porque eu jamais bato à tua porta.
Contudo
quando eu batia à tua porta
e tu vieste abrir
os teus olhos de repente
viram-me
pela primeira vez
como sempre de cada vez é a primeira
a derradeira
instância do momento de eu surgir
e tu veres-me.
Era de noite quando eu bati à tua porta
e tu vieste abrir
e viste-me
como um náufrago sussurrando qualquer coisa
que ninguém compreendeu.
Mas era de noite
e por isso
tu soubeste que era eu
e vieste abrir-te
na escuridão da tua casa.
Ah era de noite
e de súbito tudo era apenas
lábios pálpebras intumescências
cobrindo o corpo de flutuantes volteios
de palpitações trémulas adejando pelo rosto.
Beijava os teus olhos por dentro
beijava os teus olhos pensados
beijava-te pensando
e estendia a mão sobre o meu pensamento
corria para ti
minha praia jamais alcançada
impossibilidade desejada
de apenas poder pensar-te.
São mil e umas
as noites em que não bato à tua porta
e vens abrir-me
Ana Hatherly, in "Um Calculador de Improbabilidades"
quinta-feira, 3 de junho de 2010
Liberté
Sur mes cahiers d'écolier
Sur mon pupitre et les arbres
Sur le sable sur la neige
J'écris ton nom
Sur toutes les pages lues
Sur toutes les pages blanches
Pierre sang papier ou cendre
J'écris ton nom
Sur les images dorées
Sur les armes des guerriers
Sur la couronne des rois
J'écris ton nom
Sur la jungle et le désert
Sur les nids sur les genêts
Sur l'écho de mon enfance
J'écris ton nom
Sur les merveilles des nuits
Sur le pain blanc des journées
Sur les saisons fiancées
J'écris ton nom
Sur tous mes chiffons d'azur
Sur l'étang soleil moisi
Sur le lac lune vivante
J'écris ton nom
Sur les champs sur l'horizon
Sur les ailes des oiseaux
Et sur le moulin des ombres
J'écris ton nom
Sur chaque bouffée d'aurore
Sur la mer sur les bateaux
Sur la montagne démente
J'écris ton nom
Sur la mousse des nuages
Sur les sueurs de l'orage
Sur la pluie épaisse et fade
J'écris ton nom
Sur la vitre des surprises
Sur les lèvres attentives
Bien au-dessus du silence
J'écris ton nom
Sur mes refuges détruits
Sur mes phares écroulés
Sur les murs de mon ennui
J'écris ton nom
Sur l'absence sans désirs
Sur la solitude nue
Sur les marches de la mort
J'écris ton nom
Sur la santé revenue
Sur le risque disparu
Sur l'espoir sans souvenir
J'écris ton nom
Et par le pouvoir d'un mot
Je recommence ma vie
Je suis né pour te connaître
Pour te nommer
Liberté.
- 1942 -
Ce poème provient du recueil intitulé " Poésie et vérité 42 "
Sur mon pupitre et les arbres
Sur le sable sur la neige
J'écris ton nom
Sur toutes les pages lues
Sur toutes les pages blanches
Pierre sang papier ou cendre
J'écris ton nom
Sur les images dorées
Sur les armes des guerriers
Sur la couronne des rois
J'écris ton nom
Sur la jungle et le désert
Sur les nids sur les genêts
Sur l'écho de mon enfance
J'écris ton nom
Sur les merveilles des nuits
Sur le pain blanc des journées
Sur les saisons fiancées
J'écris ton nom
Sur tous mes chiffons d'azur
Sur l'étang soleil moisi
Sur le lac lune vivante
J'écris ton nom
Sur les champs sur l'horizon
Sur les ailes des oiseaux
Et sur le moulin des ombres
J'écris ton nom
Sur chaque bouffée d'aurore
Sur la mer sur les bateaux
Sur la montagne démente
J'écris ton nom
Sur la mousse des nuages
Sur les sueurs de l'orage
Sur la pluie épaisse et fade
J'écris ton nom
Sur la vitre des surprises
Sur les lèvres attentives
Bien au-dessus du silence
J'écris ton nom
Sur mes refuges détruits
Sur mes phares écroulés
Sur les murs de mon ennui
J'écris ton nom
Sur l'absence sans désirs
Sur la solitude nue
Sur les marches de la mort
J'écris ton nom
Sur la santé revenue
Sur le risque disparu
Sur l'espoir sans souvenir
J'écris ton nom
Et par le pouvoir d'un mot
Je recommence ma vie
Je suis né pour te connaître
Pour te nommer
Liberté.
- 1942 -
Ce poème provient du recueil intitulé " Poésie et vérité 42 "
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