Primavera

Primavera
Primavera de Botticelli (imagem da Google)

ADÁGIO


Tão curta a vida e tão comprido o tempo!...
Feliz quem o não sente.
Quem respira tão fundo
O ar do mundo,
Que vive em cada instante eternamente.

Miguel Torga































sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

FALAVAM-ME DE AMOR

Quando um ramo de doze badaladas
se espalhava nos móveis e tu vinhas
solstício de mel pelas escadas
de um sentimento com nozes e com pinhas,

menino eras de lenha e crepitavas
porque do fogo o nome antigo tinhas
e em sua eternidade colocavas
o que a infância pedia às andorinhas.

Depois nas folhas secas te envolvias
de trezentos e muitos lerdos dias
e eras um sol na sombra flagelado.

O fel que por nós bebes te liberta
e no manso natal que te conserta
só tu ficaste a ti acostumado.


Natália Correia
O Dilúvio e a Pomba
Lisboa, Publicações D. Quixote, 1979

NATAL À BEIRA-RIO

É o braço do abeto a bater na vidraça?
E o ponteiro pequeno a caminho da meta!
Cala-te, vento velho! É o Natal que passa,
A trazer-me da água a infância ressurrecta.
Da casa onde nasci via-se perto o rio.
Tão novos os meus Pais, tão novos no passado!
E o Menino nascia a bordo de um navio
Que ficava, no cais, à noite iluminado...
Ó noite de Natal, que travo a maresia!
Depois fui não sei quem que se perdeu na terra.
E quanto mais na terra a terra me envolvia
E quanto mais na terra fazia o norte de quem erra.
Vem tu, Poesia, vem, agora conduzir-me
À beira desse cais onde Jesus nascia...
Serei dos que afinal, errando em terra firme,
Precisam de Jesus, de Mar, ou de Poesia?

David Mourão-Ferreira, Obra Poética 1948-1988
Lisboa, Editorial Presença, 1988

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

ESTAR SÓ É ESTAR NO ÍNTIMO DO MUNDO

Por vezes cada objecto se ilumina
do que no passar é pausa íntima
entre sons minuciosos que inclinam
a atenção para uma cavidade mínima
E estar assim tão breve e tão profundo
como no silêncio de uma planta
é estar no fundo do tempo ou no seu ápice
ou na alvura de um sono que nos dá
a cintilante substância do sítio
O mundo inteiro assim cabe num limbo
e é como um eco límpido e uma folha de sombra
que no vagar ondeia entre minúsculas luzes
E é astro imediato de um lúcido sono
fluvial e um núbil eclipse
em que estar só é estar no íntimo do mundo

António Ramos Rosa
em "Poemas Inéditos

sábado, 4 de dezembro de 2010

Uma voz... diferente!

Príncipe

Príncipe:
Era de noite quando eu bati à tua porta
e na escuridão da tua casa tu vieste abrir
e não me conheceste.
Era de noite
são mil e umas
as noites em que bato à tua porta
e tu vens abrir
e não me reconheces
porque eu jamais bato à tua porta.
Contudo
quando eu batia à tua porta
e tu vieste abrir
os teus olhos de repente
viram-me
pela primeira vez
como sempre de cada vez é a primeira
a derradeira
instância do momento de eu surgir
e tu veres-me.
Era de noite quando eu bati à tua porta
e tu vieste abrir
e viste-me
como um náufrago sussurrando qualquer coisa
que ninguém compreendeu.
Mas era de noite
e por isso
tu soubeste que era eu
e vieste abrir-te
na escuridão da tua casa.
Ah era de noite
e de súbito tudo era apenas
lábios pálpebras intumescências
cobrindo o corpo de flutuantes volteios
de palpitações trémulas adejando pelo rosto.
Beijava os teus olhos por dentro
beijava os teus olhos pensados
beijava-te pensando
e estendia a mão sobre o meu pensamento
corria para ti
minha praia jamais alcançada
impossibilidade desejada
de apenas poder pensar-te.

São mil e umas
as noites em que não bato à tua porta
e vens abrir-me

Ana Hatherly, in "Um Calculador de Improbabilidades
"

domingo, 21 de novembro de 2010

sábado, 13 de novembro de 2010

domingo, 7 de novembro de 2010

A origem do chá


A História do Chá

Existem muitas lendas e mitos no que respeita à origem do chá.

A mais conhecida conta que a sua origem remonta desde há 5000 anos, na China, aquando do reinado do Imperador Sheng Nong, um governante justo e competente, amante das artes e da ciência e conhecido como o Curandeiro Divino. O Imperador, preocupado com as epidemias que devastavam o Império do Meio, decretou um edital que exigia que todas as pessoas fervessem a água antes de a consumirem.

Certo dia, quando o governador chinês passeava pelos seus jardins, pediu aos seus servidores que lhe fervessem água, enquanto descansava debaixo da sombra de uma árvore. Enquanto esperava que a água arrefece-se, algumas folhas vindas de uns arbustos caíram dentro do seu copo, atribuindo à água uma tonalidade acastanhada. O Imperador decidiu provar, surpreendendo-se com o sabor agradável. A partir deste momento ficou adepto do chá, induzindo o seu gosto ao seu povo.

Como cada lenda ou mito costuma ter sempre alguma parte de verdade, esta não é excepção. É sabido que a origem do chá remonta ao período imediatamente antes da ascensão da Dinastia T'ang ao poder, entre os anos 618 e 906.

Esta Dinastia assistiu à difusão de uma bebida feita pelos monges budistas. Esta bebida, vinda dos Himalaias, era proveniente do arbusto do chá, de nome científico Camellia Sinensis, que crescia em estado selvagem nesta cordilheira asiática.

Segundo os relatos do monge budista japonês Ennin, durante uma viagem ao Império do Meio, por volta do século IX, o chá já fazia parte dos hábitos dos chineses. Na mesma época, um monge budista chinês, de nome Lu Yu, escreveu o primeiro grande livro sobre chá, chamado Ch'a Ching, onde são descritos os métodos de cultivo e preparação usados no Império.

Foi então que o chá começou a avançar para o Ocidente, através da Ásia Central e da Rússia. No entanto, só quando os portugueses chegaram ao Oriente, nos finais do século XV, é que se começou a conhecer verdadeiramente o chá.

Nesta época, as naus portuguesas traziam carregamentos de chá até ao porto de Lisboa, ponto de onde, a maioria da carga, era depois reexportada para a Holanda e a França. Portugal rapidamente perdeu o monopólio deste comércio, apesar de ter sido um sacerdote jesuíta português o primeiro europeu a escrever sobre o chá. No século XVII, a frota dos holandeses estava muito poderosa, dando-lhes vantagem.

http://cha.web.simplesnet.pt/historia.htm - Visite o site!

Uma página da obra O Culto do Chá

O Culto do Chá




de Wenceslau de Moraes

Wenceslau de Moraes

sábado, 6 de novembro de 2010

O Carteiro de Pablo Neruda




Um filme de uma infinita poesia...

Pablo Neruda

Pablo Neruda

Tu eras

Tu eras também uma pequena folha
que tremia no meu peito.
O vento da vida pôs-te ali.
A princípio não te vi: não soube
que ias comigo,
até que as tuas raízes
atravessaram o meu peito,
se uniram aos fios do meu sangue,
falaram pela minha boca,
floresceram comigo.

Pablo Neruda

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

sábado, 30 de outubro de 2010

Mudança de tempo...

eu associei,

tudo com o tempo,

imprevisivel...

tudo e mais alguma coisa,

evolui, degrada-se

como a relva...

ou a vontade de sair de casa,

e efectivamente,

aprovar a merda dum orçamento,

neste caso nacional,

ou pode-se ligar com a insanidade,

essa é mesmo mental

internacionaliza-se,

ou a palavra mais utilizada, globalização,

está por todo o lado,

é como a metereologia,

poluição, presente na minha cabeça,

neste momento

olhei pelo horizonte,

já me falaram em coisas tortas

Torre Pizza,

mas como olho para o meu cérebro,

até um cigarro está mais inclinado...


estou queimado e verde,

os meus pulmões,

completamente intoxicados,

genocidio de neurónios...


hoje, apetecia-me ser mais igual,

comer televisões,

encher-me de mistérios

em volta dos olhares do Rui e da Joana

que vão namorar e toda a gente sabe,

Nós, gente, sabemos como acaba bem,

nunca sabemos o que esperar do mal,

bom era estar um sol grande lá fora,

e se tiver chuva "o quê que vou fazer?"

"Ai meu deus! Como ela cai?"

Isso é retórico, especulativo, expectativo,

o que é?

é como o tempo de tragédia...

Alguém comparou, eu atrevi-me,

admirem-se se o sonhos vossos

são irreconquistáveis

ou se apanharam uma enxorrada,

p'ra quem não sai de casa,

está muito desapontado...


A imaginação, completamente diferente

do sentido de esperança,

não tem asas, portanto tens de trabalhar

mas isso é bom? tem de se sustentar!


Jimmy

terça-feira, 5 de outubro de 2010

sábado, 25 de setembro de 2010

A Palavra

A palavra é uma estátua submersa,um leopardo
que estremece em escuros bosques,uma anémona
sobre uma cabeleira.Por vezes é uma estrela
que projecta a sua sombra sobre um torso.
Ei-la sem destino no clamor da noite,
cega e nua,mas vibrante de desejo
como uma magnólia molhada.Rápida é a boca
que apenas aflora os raios de uma outra luz.
Toco-lhe os subtis tornozelos,os cabelos ardentes
e vejo uma água límpida numa concha marinha.
É sempre um corpo amante e fugidio
que canta num mar musical o sangue das vogais.

António Ramos Rosa, Acordes(1989)

domingo, 8 de agosto de 2010

A Sésta

Pierrot escondido por entre o amarello dos gyrassois espreita em cautela o somno d'ella dormindo na sombra da tangerineira. E ella não dorme, espreita tambem de olhos descidos, mentindo o sôno, as vestes brancas do Pierrot gatinhando silencios por entre o amarelo dos gyrassois. E porque Elle se vem chegando perto, Ella mente ainda mais o sôno a mal-resonar.

Junto d'Ella, não teve mão em si e foi descer-lhe um beijo mudo na negra meia aberta arejando o pé pequenino. Depois os joelhos redondos e lizos, e já se debruçava por sobre os joelhos, a beijar-lhe o ventre descomposto, quando Ella acordou cançada de tanto sôno fingir.

E Elle ameaça fugida, e Ella furta-lhe a fuga nos braços nús estendidos.

E Ella, magoada dos remorsos de Pierrot, acaricia-lhe a fronte num grande perdão. E, feitas as pazes, ficou combinado que Ella dormisse outra vez.

Almada Negreiros, in 'Frisos - Revista Orpheu nº1'

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Surdo, Subterrâneo Rio

Surdo, subterrâneo rio de palavras
me corre lento pelo corpo todo;
amor sem margens onde a lua rompe
e nimba de luar o próprio lodo.

Correr do tempo ou só rumor do frio
onde o amor se perde e a razão de amar
--- surdo, subterrâneo, impiedoso rio,
para onde vais, sem eu poder ficar?

Eugénio de Andrade

segunda-feira, 26 de julho de 2010

Se eu pudesse dizer-te

Se eu pudesse dizer-te: — senta aqui

nos meus joelhos, deixa-me alisar-te,

ó amável bichinho, o pêlo fino;

depois, a contra-pêlo, provocar-te!

Se eu pudesse juntar no mesmo fio

(infinito colar!) cada arrepio

que aos viajeiros comprazidos dedos

fizesse descobrir novos enredos!

Se eu pudesse fechar-te nesta mão,

tecedeira fiel de tantas linhas,

de tanto enredo imaginário, vão,

e incitar alguém — Vê se adivinhas…

Então um fértil jogo amor seria.

Não este descerrar a mão vazia!


Alexandre O´Neill

domingo, 18 de julho de 2010

domingo, 11 de julho de 2010

Canção de enganar tristeza

Se a tristeza um dia
Te encontrar triste sozinho
Trata bem dela
Porque a tristeza quer carinho
E fala sobre a beleza
Com tanta delicadeza
Por não ter nenhum carinho
Que ela só existe
Por não ter nenhum carinho
E dá-lhe um amor tão lindo
Que quando ela se for indo
Ela vá contente
De ter tido o teu carinho

Vinicius de Moraes

sábado, 3 de julho de 2010

Eu sei que vou te amar

Estudo do nu

Essa linha que nasce nos teus ombros,
Que se prolonga em braço, depois mão,
Esses círculos tangentes, geminados,
Cujo centro em cones se resolve,
Agudamente erguidos para os lábios
Que dos teus se desprenderam, ansiosos.


Essas duas parábolas que te apertam
No quebrar onduloso da cintura,
As calipígias ciclóides sobrepostas
Ao risco das colunas invertidas:
Tépidas coxas de linhas envolventes,
Contornada espiral que não se extingue.


Essa curva quase nada que desenha
No teu ventre um arco repousado,
Esse triângulo de treva cintilante,
Caminho e selo da porta do teu corpo,
Onde o estudo de nu que vou fazendo
Se transforma no quadro terminado.


José Saramago

Dá-me um abraço

domingo, 27 de junho de 2010

Quelqu'un m'a dit

Cegueira Bendita

Ando perdida nestes sonhos verdes
De ter nascido e não saber quem sou,
Ando ceguinha a tatear paredes
E nem ao menos sei quem me cegou!

Não vejo nada, tudo é morto e vago...
E a minha alma cega, ao abandono
Faz-me lembrar o nenúfar dum lago
´Stendendo as asas brancas cor do sonho...

Ter dentro d´alma na luz de todo o mundo
E não ver nada nesse mar sem fundo,
Poetas meus irmãos, que triste sorte!...

E chamam-nos a nós Iluminados!
Pobres cegos sem culpas, sem pecados,
A sofrer pelos outros té à morte!


Florbela Espanca, in "A Mensageira das Violetas"

domingo, 20 de junho de 2010

As Palavras

As palavras são boas. As palavras são más. As palavras ofendem. As palavras pedem desculpas. As palavras queimam. As palavras acariciam. As palavras são dadas, trocadas, oferecidas, vendidas e inventadas. As palavras estão ausentes.
Algumas palavras sugam-nos, não nos largam... As palavras aconselham, sugerem, insinuam, ordenam, impõem, segregam, eliminam. São melífluas ou azedas. O mundo gira sobre palavras lubrificadas com óleo de paciência. Os cérebros estão cheios de palavras que vivem em boa paz com as suas contrárias e inimigas. Por isso as pessoas fazem o contrário do que pensam, julgando pensar o que fazem. Há muitas palavras. E há os discursos, que são palavras encostadas umas às outras, em equilíbrio instável graças a uma precária sintaxe, até ao prego final do disse ou tenho dito. Com discursos se comemora, se inaugura, se abrem e fecham sessões, se lançam cortinas de fumo ou dispõem bambinelas de veludo. São brindes, orações, palestras e conferências. Pelos discursos se transmitem louvores, agradecimentos, programas e fantasias. E depois as palavras dos discursos aparecem deitadas em papéis, são pintadas de tinta de impressão - e por essa via entram na imortalidade do verbo. E as palavras escorrem tão fluídas como o "precioso líquido". Escorrem interminavelmente, alagam o chão, sobem aos joelhos, chegam à cintura, aos ombros, ao pescoço. É o dilúvio universal, um coro desafinado que jorra de milhões de bocas. A terra segue o seu caminho envolta num clamor de loucos, aos gritos, aos uivos, envoltos também num murmúrio manso, represo e conciliador... E tudo isso atordoa as estrelas e perturba as comunicações, como as tempestades solares. Porque as palavras deixaram de comunicar. Cada palavra é dita para que se não ouça outra palavra. A palavra, mesmo quando não afirma, afirma-se. A palavra não responde nem pergunta: amassa. A palavra é a erva fresca e verde que cobre os dentes do pântano. A palavra é poeira nos olhos e olhos furados. A palavra não mostra. A palavra disfarça. Daí que seja urgente moldar as palavras para que a sementeira se mude em Seara. Daí que as palavras sejam instrumento de morte - ou de salvação. Daí que a palavra só valha o que valer o silêncio do acto. Há também o silêncio.
O silêncio, por definição, é o que não se ouve. O silêncio escuta, examina, observa, pesa e analisa. O silêncio é fecundo. O silêncio é a terra negra e fértil, o húmus do ser, a melodia calada sob a luz solar. Caem sobre ele as palavras. Todas as palavras. As palavras boas e as más. O trigo e o joio.
Mas só o trigo dá pão.


José Saramago

La virgule de José Saramago

La virgule de José Saramago
pour Le Monde.fr 18.06.10 17h55 • Mis à jour le 19.06.10 17h16


"J'écrivais un roman comme les autres, avait-il expliqué au "Monde des Livres" du 17 mars 2000. Tout à coup, à la page 24 ou 25, sans y penser, sans réfléchir, sans prendre de décision, j'ai commencé à écrire avec ce qui est devenu ma façon personnelle de raconter, cette fusion du style direct et indirect, cette abolition de la ponctuation réduite au point et à la virgule. Je crois que ce style ne serait pas né si le livre n'était pas parti de quelque chose que j'avais écouté. Il fallait trouver un ton, une façon de transcrire le rythme, la musique de la parole qu'on dit, pas de celle qu'on écrit. Ensuite, j'ai repris les vingt premières pages pour les réécrire."

Après un premier essai infructueux, à la fin des années 1940, et un deuxième roman au milieu des années 1970, c'est avec Levantado do Chao (Soulevé de la terre, non traduit en français), qu'il trouve sa forme, au début des années 1980.

La clé du style de cet ancien serrurier est celle-ci : les dialogues chez Saramago se fondent dans un bloc de prose compacte. Ils sont introduits par une virgule, suivie d'une majuscule qui signale le changement de locuteurs. Cela donne des grands romans polyphoniques, labyrinthiques, comme Le Dieu Manchot (éd. Albin-Michel), L'Année de la mort de Ricardo Reis ou Histoire du siège de Lisbonne (éd. Seuil).

ART NARRATIF TOUT EN CIRCONVOLUTIONS

Les voix s'y entremêlent, les romans ressemblent à des opéras. Les voix des personnages se superposent et sont entrecoupées par celle du romancier omniscient, souvent ironique, quand ce n'est pas par celle de Dieu lui-même, dans L'Evangile selon Jésus-Christ (éd. Seuil). "Dans les divers arts, et principalement dans l'art d'écrire, le meilleur chemin entre deux points mêmes proches n'a jamais été, ne sera jamais et n'est pas la ligne droite", écrit-il dans Le Radeau de pierre.

Parce qu'il a mis du temps à le forger, Saramago manie avec aisance un art narratif tout en circonvolutions qu'il appuie sur une idée romanesque, dont il file la métaphore jusqu'au bout. "J'ai besoin d'entendre une voix qui dit ce que je suis en train d'écrire, alors le moteur commence à fonctionner, sinon ça n'avance pas. J'ai aussi besoin d'une idée forte. Je peux attendre trois semaines ou trois mois, il y a des pensées qui flottent et je rencontre l'idée que j'attendais, je le sais immédiatement", expliquait-il.

C'est ainsi que l'intervention d'un correcteur modifie le cours du siège de Lisbonne (Histoire du siège de Lisbonne) ; la péninsule ibérique se détache de l'Europe pour devenir une île (Le Radeau de pierre) ; Joseph, hanté par le massacre des innocents, se suicide (L'Evangile selon Jésus-Christ) ; un matin, tout le monde (ou presque) se réveille aveugle (L'Aveuglement). Chez Saramago, les idées (parfois un peu trop appuyées) font toujours la part belle à une riche imagination.


Alain Salles

sábado, 19 de junho de 2010

Mia Couto em Vila Nova de Famalicão



Foi um Mia Couto tímido, simples e verdadeiro, que se apresentou a uma pequena assistência, na Biblioteca Municipal de Vila Nova de Famalicão, ontem à noite.


Começou por falar de José Saramago, homenageando-o, e seguiu ao sabor das perguntas dos admiradores (admiradoras em maior número...) da sua escrita.


Mais uma vez, o que inferi da noite de ontem, foi que os escritores se estão nas tintas para as catalogações e rótulos literários que lhe são postos a eles e às suas obras.


"Escrevo para ser feliz", ouvi-o eu declarar por diversas vezes!


Viva a escrita livre e feliz!


Adágio

Passado, Presente, Futuro

Eu fui. Mas o que fui já me não lembra:
Mil camadas de pó disfarçam, véus,
Estes quarenta rostos desiguais.
Tão marcados de tempo e macaréus.

Eu sou. Mas o que sou tão pouco é:
Rã fugida do charco, que saltou,
E no salto que deu, quanto podia,
O ar dum outro mundo a rebentou.

Falta ver, se é que falta, o que serei:
Um rosto recomposto antes do fim,
Um canto de batráquio, mesmo rouco,
Uma vida que corra assim-assim.


José Saramago, in "Os Poemas Possíveis"

Universalidade...

Os génios são espíritos demasiado espaçosos para caberem num país, numa nação, numa cultura... São espíritos livres que não obedecem a fronteira alguma, já que falam do ser humano, mexendo com a consciência de cada um!

Sorte teve Portugal deste homem ter nascido em terras lusas e ter usado o nosso idioma para exteriorizar, com maestria, o seu pensamento!

Camilo Castelo Branco, Eça de Queirós, Florbela Espanca, Fernando Pessoa, Natália Correia, Cesariny, Jorge de Sena, Alexandre O’Neil, Miguel Torga, …, Ademar Santos, José Saramago são apenas alguns dos nomes entre milhares, cuja nacionalidade pouco importou porque lhe bastou a ESCRITA!



Só os insignificantes não levantam vozes insultuosas, poeirentas e dísparas...


Adágio

José Saramago


José Saramago 16 de Novembro de 192218 de Junho de 2010

quinta-feira, 17 de junho de 2010

Le ciel sur Terre...

Le ciel sur Terre...

Le ciel sur Terre...

Le ciel sur Terre...

Amor

A jovem deusa passa
Com véus discretos sobre a virgindade;
Olha e não olha, como a mocidade;
E um jovem deus pressente aquela graça.

Depois, a vide do desejo enlaça
Numa só volta a dupla divindade;
E os jovens deuses abrem-se à verdade,
Sedentos de beber na mesma taça.

É um vinho amargo que lhes cresta a boca;
Um condão vago que os desperta e toca
De humana e dolorosa consciência.

E abraçam-se de novo, já sem asas.
Homens apenas. Vivos como brasas,
A queimar o que resta da inocência.


Miguel Torga, in 'Libertação'

domingo, 13 de junho de 2010

sábado, 12 de junho de 2010

Tu e Eu Meu Amor

Tu e eu meu amor
meu amor eu e tu
que o amor meu amor
é o nu contra o nu.

Nua a mão que segura
outra mão que lhe é dada
nua a suave ternura
na face apaixonada
nua a estrela mais pura
nos olhos da amada
nua a ânsia insegura
de uma boca beijada.

Tu e eu meu amor
meu amor eu e tu
que o amor meu amor
é o nu contra o nu.

Nu o riso e o prazer
como é nua a sentida
lágrima de não ver
na face dolorida
nu o corpo do ser
na hora prometida
meu amor que ao nascer
nus viemos à vida.

Tu e eu meu amor
meu amor eu e tu
que o amor meu amor
é o nu contra o nu.

Nua nua a verdade
tão forte no criar
adulta humanidade
nu o querer e o lutar
dia a dia pelo que há-de
os homens libertar
amor que a eternidade
é ser livre e amar.

Tu e eu meu amor
meu amor eu e tu
que o amor meu amor
é o nu contra o nu.


Manuel da Fonseca, in "Poemas para Adriano"

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Portugal


Ó Portugal, se fosses só três sílabas,
linda vista para o mar,
Minho verde, Algarve de cal,
jerico rapando o espinhaço da terra,
surdo e miudinho,
moinho a braços com um vento
testarudo, mas embolado e, afinal, amigo,
se fosses só o sal, o sol, o sul,
o ladino pardal,
o manso boi coloquial,
a rechinante sardinha,
a desancada varina,
o plumitivo ladrilhado de lindos adjectivos,
a muda queixa amendoada
duns olhos pestanítidos,
se fosses só a cegarrega do estio, dos estilos,
o ferrugento cão asmático das praias,
o grilo engaiolado, a grila no lábio,
o calendário na parede, o emblema na lapela,
ó Portugal, se fosses só três sílabas
de plástico, que era mais barato!

*

Doceiras de Amarante, barristas de Barcelos,
rendeiras de Viana, toureiros da Golegã,
não há "papo-de-anjo" que seja o meu derriço,
galo que cante a cores na minha prateleira,
alvura arrendada para ó meu devaneio,
bandarilha que possa enfeitar-me o cachaço.

Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo,
golpe até ao osso, fome sem entretém,
perdigueiro marrado e sem narizes, sem perdizes,
rocim engraxado,
feira cabisbaixa,
meu remorso,
meu remorso de todos nós...


Alexandre O'Neil

sábado, 5 de junho de 2010

Príncipe

Príncipe:
Era de noite quando eu bati à tua porta
e na escuridão da tua casa tu vieste abrir
e não me conheceste.
Era de noite
são mil e umas
as noites em que bato à tua porta
e tu vens abrir
e não me reconheces
porque eu jamais bato à tua porta.
Contudo
quando eu batia à tua porta
e tu vieste abrir
os teus olhos de repente
viram-me
pela primeira vez
como sempre de cada vez é a primeira
a derradeira
instância do momento de eu surgir
e tu veres-me.
Era de noite quando eu bati à tua porta
e tu vieste abrir
e viste-me
como um náufrago sussurrando qualquer coisa
que ninguém compreendeu.
Mas era de noite
e por isso
tu soubeste que era eu
e vieste abrir-te
na escuridão da tua casa.
Ah era de noite
e de súbito tudo era apenas
lábios pálpebras intumescências
cobrindo o corpo de flutuantes volteios
de palpitações trémulas adejando pelo rosto.
Beijava os teus olhos por dentro
beijava os teus olhos pensados
beijava-te pensando
e estendia a mão sobre o meu pensamento
corria para ti
minha praia jamais alcançada
impossibilidade desejada
de apenas poder pensar-te.

São mil e umas
as noites em que não bato à tua porta
e vens abrir-me


Ana Hatherly, in "Um Calculador de Improbabilidades"

quinta-feira, 3 de junho de 2010

Liberté

Sur mes cahiers d'écolier
Sur mon pupitre et les arbres
Sur le sable sur la neige
J'écris ton nom

Sur toutes les pages lues
Sur toutes les pages blanches
Pierre sang papier ou cendre
J'écris ton nom

Sur les images dorées
Sur les armes des guerriers
Sur la couronne des rois
J'écris ton nom

Sur la jungle et le désert
Sur les nids sur les genêts
Sur l'écho de mon enfance
J'écris ton nom

Sur les merveilles des nuits
Sur le pain blanc des journées
Sur les saisons fiancées
J'écris ton nom

Sur tous mes chiffons d'azur
Sur l'étang soleil moisi
Sur le lac lune vivante
J'écris ton nom

Sur les champs sur l'horizon
Sur les ailes des oiseaux
Et sur le moulin des ombres
J'écris ton nom

Sur chaque bouffée d'aurore
Sur la mer sur les bateaux
Sur la montagne démente
J'écris ton nom

Sur la mousse des nuages
Sur les sueurs de l'orage
Sur la pluie épaisse et fade
J'écris ton nom

Sur la vitre des surprises
Sur les lèvres attentives
Bien au-dessus du silence
J'écris ton nom

Sur mes refuges détruits
Sur mes phares écroulés
Sur les murs de mon ennui
J'écris ton nom

Sur l'absence sans désirs
Sur la solitude nue
Sur les marches de la mort
J'écris ton nom

Sur la santé revenue
Sur le risque disparu
Sur l'espoir sans souvenir
J'écris ton nom

Et par le pouvoir d'un mot
Je recommence ma vie
Je suis né pour te connaître
Pour te nommer

Liberté.


- 1942 -

Ce poème provient du recueil intitulé " Poésie et vérité 42 "

domingo, 30 de maio de 2010

Ei-lo...no gesto e na figura!


Ademar Santos


Há uma semana, eu não queria acreditar! Mas afinal era verdade: o Ademar partira... mesmo!
Nós tínhamos o projecto da Revista da escola "em mãos"... Qualidade era a sua palavra de ordem!... Nada será igual sem o Ademar.
Sempre cavalheiro e atencioso com aqueles que ele estimava; implacável ou distante com os demais...
De vez em quando, ainda lhe oiço as gargalhadas sonoras e provocadoras!
Ter sido sua Amiga foi um privilégio de que me consciencializo mais a cada dia que passa...
Foi nobre até ao fim.

Improviso (mais um) para pedra tumular...

Se renascesse
repetiria tudo outra vez
e acompanhar-me-ia ao piano
sem partitura
que já me saberia de ouvido
ou de cor
voltaria por exemplo a escrever sonetos
quase perfeitos
para a Deolinda
que virginava entre as capelas da Sé
e para a Sameiro
de quem guardo ainda uma fotografia
naturalista
a preto e branco
e para a Conceição
que me acompanhava sempre em silêncio
ou em latim
se calhar já morreram
ou continuam ainda a ler-me em segredo
já sexagenárias
se renascesse
repetiria tudo outra vez
e acompanhar-me-ia ao piano
sem partitura
que já me saberia de ouvido
ou de cor
e regressaria sempre
à lenta memória das teclas
e dos dedos
que tocaram todas as palavras.


Ademar
19.05.2010

Se os Poetas Dessem as Mãos

Se os Poetas dessem as mãos
e fechassem o Mundo
no grande abraço da Poesia,
cairiam as grades das prisões
que nos tolhem os passos,
os arames farpados
que nos rasgam os sonhos,
os muros de silêncio,
as muralhas da cólera e do ódio,
as barreiras do medo,
e o Dia, como um pássaro liberto,
desdobraria enfim as asas
sobre a Noite dos homens.

Se os Poetas dessem as mãos
e fechassem o Mundo
no grande abraço da Poesia.


Fernanda de Castro, in "Ronda das Horas Lentas"

domingo, 23 de maio de 2010

Foi há um ano... estranha coincidência!?

"Improviso para assistir a morte...



"

in Abnoxio

Última intervenção sua, Ademar, para o Mundo...

"
maio 22, 2010
Informação...
Alguns amigos, estranhando o silêncio, perguntam-me se morri. Não tenho passado bem, mas não morrri. Espero ressuscitar...
A todos, agradeço a preocupação...

Posted by Ademar Santos at 05:16 PM Permalink Comments (0)

"
in Abnoxio


Calou-se para sempre a voz honesta e incómoda!
Calou-se para sempre o Poeta!

Requiem pelo meu Amigo Ademar!




NUNCA associei o Requiem de Mozart à morte, mas sim à elevação espiritual e à grandeza humana.
Hoje, é a minha sentida homenagem a si, Ademar, que eu admirava e com quem aprendi muito...

Estou consternada... Ademar, os grandes não morrem!!!!

sábado, 22 de maio de 2010

Majestade...

Um serão...

Um serão...

Canção do Amor-Perfeito

Eu vi o raio de sol
beijar o outono.
Eu vi na mão dos adeuses
o anel de ouro.
Não quero dizer o dia.
Não posso dizer o dono.

Eu vi bandeiras abertas
sobre o mar largo
e ouvi cantar as sereias.
Longe, num barco,
deixei meus olhos alegres,
trouxe meu sorriso amargo.

Bem no regaço da lua,
já não padeço.
Ai, seja como quiseres,
Amor-Perfeito,
gostaria que ficasses,
mas, se fores, não te esqueço.

Cecília Meireles, in 'Retrato Natural'

domingo, 16 de maio de 2010

Destino

Quem disse à estrela o caminho
Que ela há-de seguir no céu?
A fabricar o seu ninho
Como é que a ave aprendeu?
Quem diz à planta «Florece!»
E ao mudo verme que tece
Sua mortalha de seda
Os fios quem lhos enreda?

Ensinou alguém à abelha
Que no prado anda a zumbir
Se à flor branca ou à vermelha
O seu mel há-de ir pedir?
Que eras tu meu ser, querida,
Teus olhos a minha vida,
Teu amor todo o meu bem...
Ai!, não mo disse ninguém.

Como a abelha corre ao prado,
Como no céu gira a estrela,
Como a todo o ente o seu fado
Por instinto se revela,
Eu no teu seio divino .
Vim cumprir o meu destino...
Vim, que em ti só sei viver,
Só por ti posso morrer.


Almeida Garrett, in 'Folhas Caídas'

Primaveril

o céu é tão azul quando te vejo
as nuvens por magia se desfazem
os campos de repente florescem
as montanhas ganham outro colorido
e exalam adormecidos perfumes
nas urzes e nas giestas
na salva, no rosmaninho
e o meu coração voa
sem precisar de caminho
fica leve alvoroçado
como uma borboleta
por te sentir ao seu lado.
apetece-me correr
abrir os braços, cantar
em coro com os ribeiros
que o meu amor chegou
num dia de primavera.

H.M.

sábado, 15 de maio de 2010


Narciso













Narciso

Dentro de mim me quis eu ver. Tremia,
Dobrado em dois sobre o meu próprio poço...
Ah, que terrível face e que arcabouço
Este meu corpo lânguido escondia!

Ó boca tumular, cerrada e fria,
Cujo silêncio esfíngico bem ouço!
Ó lindos olhos sôfregos, de moço,
Numa fronte a suar melancolia!

Assim me desejei nestas imagens.
Meus poemas requintados e selvagens,
O meu Desejo os sulca de vermelho:

Que eu vivo à espera dessa noite estranha,
Noite de amor em que me goze e tenha,
...Lá no fundo do poço em que me espelho!


José Régio, in 'Biografia'

quinta-feira, 13 de maio de 2010

Deixarei os jardins a brilhar com seus olhos

Deixarei os jardins a brilhar com seus olhos
detidos: hei-de partir quando as flores chegarem
à sua imagem. Este verão concentrado
em cada espelho. O próprio
movimento o entenebrece. Mas chamejam os lábios
dos animais. Deixarei as constelações panorâmicas destes dias
internos.


Vou morrer assim, arfando
entre o mar fotográfico
e côncavo
e as paredes com as pérolas afundadas. E a lua desencadeia nas grutas
o sangue que se agrava.


Está cheio de candeias, o verão de onde se parte,
ígneo nessa criança
contemplada. Eu abandono estes jardins
ferozes, o génio
que soprou nos estúdios cavados. É a cólera que me leva
aos precipícios de agosto, e a mansidão
traz-me às janelas. São únicas as colinas como o ar
palpitante fechado num espelho. É a estação dos planetas.
Cada dia é um abismo atómico.


E o leite faz-se tenro durante
os eclipses. Bate em mim cada pancada do pedreiro
que talha no calcário a rosa congenital.
A carne, asfixiam-na os astros profundos nos casulos.
O verão é de azulejo.
É em nós que se encurva o nervo do arco
contra a flecha. Deus ataca-me
na candura. Fica, fria,
esta rede de jardins diante dos incêndios. E uma criança
dá a volta à noite, acesa completamente
pelas mãos.


Herberto Helder

segunda-feira, 10 de maio de 2010

Eu e Tu

Dois! Eu e Tu, num ser indispensável! Como
Brasa e carvão, centelha e lume, oceano e areia,
Aspiram a formar um todo, — em cada assomo
A nossa aspiração mais violenta se ateia...

Como a onda e o vento, a Lua e a noite, o orvalho e a selva
— O vento erguendo a vaga, o luar doirando a noite,
Ou o orvalho inundando as verduras da relva —
Cheio de ti, meu ser de eflúvios impregnou-te!

Como o lilás e a terra onde nasce e floresce,
O bosque e o vendaval desgrenhando o arvoredo,
O vinho e a sede, o vinho onde tudo se esquece,
— Nós dois, de amor enchendo a noite do degredo,

Como partes dum todo, em amplexos supremos
Fundindo os corações no ardor que nos inflama,
Para sempre um ao outro, Eu e Tu, pertencemos,
Como se eu fosse o lume e tu fosses a chama...


António Feijó, in 'Sol de Inverno'

domingo, 2 de maio de 2010

O poema que me dedicou a minha filha

E até o meu coração
Ficou enorme, mãe!
Olha – queres ouvir-me? –
Ás vezes ainda sou o menino
Que adormeceu nos teus olhos ;
Ainda aperto contra o coração
Rosas tão brancas
Como as que tens na moldura ;
Ainda oiço a tua voz:
Era uma vez uma princesa
No meio de um laranjal…
Mas – tu sabes – a noite é enorme,
E todo o meu corpo cresceu.
Eu saí da moldura,
Dei às aves meus olhos a beber.
Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo-te as rosas.
Boa noite. Eu vou com as aves.


Poema à Mãe”, Eugénio de Andrade

Maternidade de Almada Negreiros

Palavras para a Minha Mãe

mãe, tenho pena. esperei sempre que entendesses
as palavras que nunca disse e os gestos que nunca fiz.
sei hoje que apenas esperei, mãe, e esperar não é suficiente.

pelas palavras que nunca disse, pelos gestos que me pediste
tanto e eu nunca fui capaz de fazer, quero pedir-te
desculpa, mãe, e sei que pedir desculpa não é suficiente.

às vezes, quero dizer-te tantas coisas que não consigo,
a fotografia em que estou ao teu colo é a fotografia
mais bonita que tenho, gosto de quando estás feliz.

lê isto: mãe, amo-te.

eu sei e tu sabes que poderei sempre fingir que não
escrevi estas palavras, sim, mãe, hei-de fingir que
não escrevi estas palavras, e tu hás-de fingir que não
as leste, somos assim, mãe, mas eu sei e tu sabes.


José Luís Peixoto, in "A Casa, a Escuridão"

Não tive uma Mãe assim...

sábado, 1 de maio de 2010

Le muguet






Selon la tradition, le 1er mai, on offre un brin de muguet aux gens que l'on aime. Le muguet est une fleur "porte-bonheur".

Estar Só é Estar no Íntimo do Mundo

Por vezes cada objecto se ilumina
do que no passar é pausa íntima
entre sons minuciosos que inclinam
a atenção para uma cavidade mínima
E estar assim tão breve e tão profundo
como no silêncio de uma planta
é estar no fundo do tempo ou no seu ápice
ou na alvura de um sono que nos dá
a cintilante substância do sítio
O mundo inteiro assim cabe num limbo
e é como um eco límpido e uma folha de sombra
que no vagar ondeia entre minúsculas luzes
E é astro imediato de um lúcido sono
fluvial e um núbil eclipse
em que estar só é estar no íntimo do mundo


António Ramos Rosa, in "Poemas Inéditos"

sexta-feira, 30 de abril de 2010

Jazz de sempre...

A Teia da Esperança

A teia tecida
nas noites de esperança,
rasgada e ferida,
segue a nossa andança.

E juntos, mãos dadas,
olhamos pra ela,
vontades paradas,
quais barcos sem vela.

Amigo, que o braço
cansado de tédio
ergamos no espaço!
É esse o remédio.

Depois de cerzidas,
não ficam marcadas
profundas feridas
em teias rasgadas!


Isabel Gouveia, in "Poemas Vários (1950-1975)"

quarta-feira, 28 de abril de 2010

A Felicidade é um Túnel

o domínio
o erotismo do domínio
do domínio irrisório
mas enorme

submeter
ver tremer
ver o tremor do outro

vencer
o gelo
o desdém
veloz

a felicidade é um túnel

Ana Hatherly, in "Um Calculador de Improbabilidades"

terça-feira, 27 de abril de 2010

Pai, a Minha Sombra és tu

a cadeira está vazia, um corpo ausente
não aquece a madeira que lhe dá forma

e não ouço o recado que me quiseste dar
nem a tua voz forte que grita meninos
na hora de acordar
ouço o teu abraço, no corredor em gaia
e os olhos molhados pela inusitada despedida

o sol foge
mas o crepúsculo desenha a sombra que
tenho colada aos pés
ou o espelho, coberto com a tua face

pai, digo-te
a minha sombra és tu


Jorge Reis-Sá, in "A Palavra no Cimo das Águas"

domingo, 25 de abril de 2010

Jazz de sempre...

Jazz de sempre...

Liberdade... foi há 36 anos!

Esta Gente

Esta gente cujo rosto
Às vezes luminoso
E outras vezes tosco

Ora me lembra escravos
Ora me lembra reis

Faz renascer meu gosto
De luta e de combate
Contra o abutre e a cobra
O porco e o milhafre

Pois a gente que tem
O rosto desenhado
Por paciência e fome
É a gente em quem
Um país ocupado
Escreve o seu nome

E em frente desta gente
Ignorada e pisada
Como a pedra do chão
E mais do que a pedra
Humilhada e calcada

Meu canto se renova
E recomeço a busca
De um país liberto
De uma vida limpa
E de um tempo justo


Sophia de Mello Breyner Andresen, in "Geografia"

Revolução

Como casa limpa
Como chão varrido
Como porta aberta

Como puro início
Como tempo novo
Sem mancha nem vício

Como a voz do mar
Interior de um povo

Como página em branco
Onde o poema emerge

Como arquitectura
Do homem que ergue
Sua habitação

Sophia de Mello Breyner Andresen, in "O Nome das Coisas"

sábado, 24 de abril de 2010

Paz...

Hino à Beleza

Onde quer que o fulgor da tua glória apareça,
— Obra de génio, flor de heroísmo ou santidade, —
Da Gioconda imortal na radiosa cabeça,
Num acto de grandeza augusta ou de bondade,

— Como um pagão subindo à Acrópole sagrada,
Vou de joelhos render-te o meu culto piedoso,
Ou seja o Herói que leva uma aurora na Espada,
Ou o Santo beijando as chagas do Leproso.

Essa luz sem igual com que sempre iluminas
Tudo o que existe em nós de grande e puro, veio
Do mesmo foco em mil parábolas divinas:
— Raios do mesmo olhar, ânsias do mesmo seio.

Alta revelação que, baixando em segredo,
O prisma humano quebra em ângulos dispersos,
Como a água a cair de rochedo em rochedo
Repete o mesmo som, mas em modos diversos.

É audácia no Herói; resignação no Santo;
Som e Cor, ondulando em formas imortais;
No mármore rebelde abre em folhas de acanto,
E esmalta de candura a flora dos vitrais.

Ó Beleza! Ó Beleza! as Horas fugitivas
Passam diante de ti, aladas como sonhos...
Que importa onde elas vão, doutra força cativas,
Se o Infinito luz nos teus olhos risonhos?!

Abrem flores, cantando, ao teu hálito ardente,
Brilham as aves como estrelas, e as estrelas,
Como flores enchendo a noite refulgente,
Deixam-se resvalar sobre quem vai colhê-las...

És tu que às ilusões dás juventude e forma,
Tu, que talvez do céu, de onde vens, te recordes
Quando, a ouvir-nos chorar, a tua voz transforma
Dissonâncias de dor em imortais acordes.

Vejo-te muita vez, — luz de aurora ou de raio,—
Como um gládio de fogo a avançar no horizonte;
Ou então, em manhãs transparentes de Maio,
Náiade toda nua a fugir duma fonte.

Outras vezes, de noite e a ocultas, apareces,
Como ovelha que Deus do seu redil tresmalha,
Trazendo no regaço inesgotáveis messes,
Que Ele por tuas mãos sobre a miséria espalha...

Pudesse eu revelar-te em estrofes aladas,
Que partissem ao Sol refulgindo em lavores,
Com rimas de oiro, em talau e púrpura engastadas,
Como versos que vão desabrochando em flores!

Mas a língua não é sumptuosa bastante
Para nela deixar teu génio circunscrito;
Trago-te dentro em mim, sinto-te a cada instante,
E a voz nem mesmo tem a eloquência dum grito!

Mas se para o teu culto, em esplendor externo,
Não encontro uma prece altamente expressiva,
Por ti meu coração arde dum fogo eterno,
Como chama a tremer de lâmpada votiva!


António Feijó, in 'Sol de Inverno'

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Outros ritmos...

Outros ritmos...

Passagem

Comemoras o dia
da solidão As palavras
serão esquecidas ou apenas

as temerás mais uma vez e
partirás para um lugar
onde julgas poder sentir o mundo
pulsar na tua pele

afinal imortal Nos olhos
passará o filme aquoso
do que viveste Viverias
de novo esse presente obscuro

tão futuro Já então
por vezes confundias o teu corpo
com o ar ou a água e entregavas
à sua transparência

a paixão
Mas o fogo e a terra são mais
densos Geram víboras
na tarde


Gastão Cruz, in "As Pedras Negras"

terça-feira, 20 de abril de 2010

Blues...

Estar no Mundo

Ao corpo colados a silenciosas
colunas de sal pavimentados eis os muros
paralelos eis as rápidas deformações da
linguagem (cálido ascetismo)
de quem arde por dentro — estar no mundo
é teu caminho estar na cólera
lavrada
e sobre si mesma dobrada e a guerra
mastigar a morte seca a subalimentada
explosão do corpo deformações suicídio
quotidiano — tal a poesia
se reflecte na luz a erosão do poema
o apodrece e movimenta— cinza mineral
entre restos de música e pão —


Casimiro de Brito, in "Negação da Morte"

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Destino

à ternura pouca
me vou acostumando
enquanto me adio
servente de danos e enganos

vou perdendo morada
na súbita lentidão
de um destino
que me vai sendo escasso

conheço a minha morte
seu lugar esquivo
seu acontecer disperso

agora
que mais
me poderei vencer?

Mia Couto, in "Raiz de Orvalho e Outros Poemas"

domingo, 18 de abril de 2010

Requiescat

Por que me vens, com o mesmo riso,
Por que me vens, com a mesma voz,
Lembrar aquele Paraíso,
Extinto para nós?

Por que levantas esta lousa?
Por que, entre as sombras funerais,
Vens acordar o que repousa,
O que não vive mais?

Ah! esqueçamos, esqueçamos
Que foste minha e que fui teu:
Não lembres mais que nos amamos,
Que o nosso amor morreu!

O amor é uma árvore ampla, e rica
De frutos de ouro, e de embriaguez:
Infelizmente, frutifica
Apenas uma vez...

Sob essas ramas perfumadas,
Teus beijos todos eram meus:
E as nossas almas abraçadas
Fugiam para Deus.

Mas os teus beijos esfriaram.
Lembra-te bem! lembra-te bem!
E as folhas pálidas murcharam,
E o nosso amor também.

Ah! frutos de ouro, que colhemos,
Frutos da cálida estação,
Com que delícia vos mordemos,
Com que sofreguidão!

Lembras-te? os frutos eram doces...
Se ainda os pudéssemos provar!
Se eu fosse teu... se minha fosses,
E eu te pudesse amar...

Em vão, porém, me beijas, louca!
Teu beijo, a palpitar e a arder,
Não achará, na minha boca,
Outro para o acolher.

Não há mais beijos, nem mais pranto!
Lembras-te? quando te perdi
Beijei-te tanto, chorei tanto,
Com tanto amor por ti,

Que os olhos, vês? já tenho enxutos,
E a minha boca se cansou:
A árvore já não tem mais frutos!
Adeus! tudo acabou!

Outras paixões, outras idades!
Sejam os nossos corações
Dois relicários de saudades
E de recordações.

Ah! esqueçamos, esqueçamos!
Durma tranqüilo o nosso amor
Na cova rasa onde o enterramos
Entre os rosais em flor...


Olavo Bilac, in "Poesias"
Brasil
[1865-1918]
Poeta/Jornalista

sábado, 17 de abril de 2010

Primavera

Passei a Primavera de meus anos
Com maternais desvelos amorosos.
Com meiguices, afagos carinhosos,
Com mimos de solícitos afanos.

Desenfaixado dos primeiros panos,
Pus-me em pé, dei passinhos vagarosos,
Logo corridas, saltos brincalhosos,
Travessuras de meninais enganos.

Nesta idade infantil da Primavera,
Com outros meus iguais brincões folgava.
Ah, quão gostoso, então, o tempo me era!

Inocente brincar só me encantava:
Feliz, se aqui ficando eu conhecera
A força do prazer que desfrutava!

Francisco Joaquim Bingre, in 'Sonetos'

terça-feira, 13 de abril de 2010

Pedra Filosofal

Equinócio da Primavera

Da noite a aragem tépida refrescando vem
surpreender as luzes que, interiores, se apagam
lentamente, uma após outra, como em madrugada
ao longe as luzes de outra margem - rio
descido pelas águas tenuemente crespas,
sombras passando, e escorre matutina,
ainda sem brilho, a vibração das águas,
enquanto rósea apenas de uma aurora ausente
a crista das montanhas reverdece.

Por sobre a plácida e pensante aragem física
das violações diurnas, de amarguras,
vilezas vistas e traições sonhadas,
notícias de jornal e desafios,
guerra iminente ou, mais que dolorosa,
cravada nas imagens de uma paz sombria,
perpassa a noite véus de primavera,
glicíneas que amanhã estarão floridas,
e folhas verdes, muito frágeis, tenras,
e o azular-se o mar, o distanciar-se o céu
na crua luz que juvenis sorrisos,
traços ligeiros de alegria funda,
devora lentamente, e as rugas ficam...
- ao longe as luzes de outra margem, rio
onde a noite se esconde até à morte.

Jorge de Sena

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Jazz de sempre...

Tal a Vida

Em declive trepamos pela nuvem
dos dias — em declive circundamos
obscuros cristais
transportados no sangue— e somos e
levantamos
as cores primitivas da fonte a luz
que resvala corpo a corpo
a semente sazonada de quem roubou
o fogo — em declive canto
a ternura diluída a luz reflectida
neste muro onde vejo
a secreção da fala onde ouço
um caminho de metáforas: tal
a vida —


Casimiro de Brito, in "Negação da Morte"

domingo, 11 de abril de 2010

Jazz de sempre...

Jazz de sempre...

Música de sempre...

Jazz de sempre...

Metafísica da Malva

Imaginava que as arestas das grandes folhas
esmaeciam e que a malva odorífera
era o coração verde mais vivo
entre as plantas daqueles campos.
Campos que em si
esmaeciam também na luz jacente celeste
espalhada pelo chão sem fim.
Céu inteiro no mundo sem diferença.
Folhagem a ser imaginada somente,
depois de a ver e apalpar o poeta,
guardada no coração para a rever.


Fiama Hasse Pais Brandão, in "Três Rostos - Arómatas"

Jazz de sempre...

sábado, 10 de abril de 2010

O Livro dos Amantes


I

Glorifiquei-te no eterno.
Eterno dentro de mim
fora de mim perecível.
Para que desses um sentido
a uma sede indefinível.

Para que desses um nome
à exactidão do instante
do fruto que cai na terra
sempre perpendicular
à humidade onde fica.

E o que acontece durante
na rapidez da descida
é a explicação da vida.

II

Harmonioso vulto que em mim se dilui.
Tu és o poema
e és a origem donde ele flui.
Intuito de ter. Intuito de amor
não compreendido.
Fica assim amor. Fica assim intuito.
Prometido.

III

Príncipe secreto da aventura
em meus olhos um dia começada e finita.
Onda de amargura numa água tranquila.
Flor insegura enlaçada no vento que a suporta.
Pássaro esquivo em meus ombros de aragem
reacendendo em cadência e em passagem
a lua que trazia e que apagou.

IV

Dá-me a tua mão por cima das horas.
Quero-te conciso.
Adão depois do paraíso
errando mais nítido à distância
onde te exalto porque te demoras.

V

Toma o meu corpo transparente
no que ultrapassa tua exigência taciturna
Dou-me arrepiando em tua face
uma aragem nocturna.

Vem contemplar nos meus olhos de vidente
a morte que procuras
nos braços que te possuem para além de ter-te.

Toma-me nesta pureza com ângulos de tragédia.
Fica naquele gosto a sangue
que tem por vezes a boca da inocência.

VI

Aumentámos a vida com palavras
água a correr num fundo tão vazio.
As vidas são histórias aumentadas.
Há que ser rio.

Passámos tanta vez naquela estrada
talvez a curva onde se ilude o mundo.
O amor é ser-se dono e não ter nada.
Mas pede tudo.

VII

Tu pedes-me a noção de ser concreta
num sorriso num gesto no que abstrai
a minha exactidão em estar repleta
do que mais fica quando de mim vai.

Tu pedes-me uma parcela de certeza
um desmentido do meu ser virtual
livre no resultado de pureza
da soma do meu bem e do meu mal.

Deixa-me assim ficar. E tu comigo
sem tempo na viagem de entender
o que persigo quando te persigo.

Deixa-me assim ficar no que consente
a minha alma no gosto de reter-te
essencial. Onde quer que te invente.

VIII

Eis-me sem explicações
crucificada em amor:
a boca o fruto e o sabor.

IX

Pusemos tanto azul nessa distância
ancorada em incerta claridade
e ficamos nas paredes do vento
a escorrer para tudo o que ele invade.

Pusemos tantas flores nas horas breves
que secam folhas nas árvores dos dedos.
E ficámos cingidos nas estátuas
a morder-nos na carne dum segredo.


Natália Correia, in "Poemas (1955)"

quinta-feira, 8 de abril de 2010

Nostalgia do Presente

Naquele preciso momento o homem disse:
«O que eu daria pela felicidade
de estar ao teu lado na Islândia
sob o grande dia imóvel
e de repartir o agora
como se reparte a música
ou o sabor de um fruto.»
Naquele preciso momento
o homem estava junto dela na Islândia.


Jorge Luis Borges, in "A Cifra"
Tradução de Fernando Pinto do Amaral

terça-feira, 6 de abril de 2010

Clair de Lune, Debussy

J.S. Bach Toccata & Fugue in d minor

Meu Ser Evaporei na Luta Insana

Meu ser evaporei na luta insana
Do tropel de paixões que me arrastava:
Ah! cego eu cria, ah! mísero eu sonhava
Em mim quasi imortal a essência humana!

De que inúmeros sóis a mente ufana
Existência falaz me não dourava!
Mas eis sucumbe Natureza escrava
Ao mal, que a vida em sua origem dana.

Prazeres, sócios meus, e meus tiranos!
Esta alma, que sedenta em si não coube,
No abismo vos sumiu dos desenganos

Deus, ó Deus!... quando a morte a luz me roube,
Ganhe um momento o que perderam anos,
Saiba morrer o que viver não soube.


Bocage, in 'Rimas'

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Vozes Minhas

O súbito fraseador que mimava
a sua fala pela do vento
não me disse Heraclito fui,
tal como eu o pensei.
Disse só deste lado do recorte
da serra sopra mais.
Ouvir por dentro. Clarear
traços que nos separam
da figura falante. O amanho
da Terra liga-nos.
Ouvinte do vento, não me
disse como eu: Verdade
e substância, na primeira apanha.
Quietude. Êxtase, na eclosão.

Cavou ao longo da esticada corda
que orienta as leiras. Esteve
em movimento ali um dia: Ó terra,
tudo está nos sentidos
antes do senso, voz certa,
som áspero, vento de rajadas grossas.


Fiama Hasse Pais Brandão, in "Três Rostos - Ecos"

Jazz

À Primavera

A vida anda possessa de Poesia!
Anda prenha de mosto!
Ou é da luz do dia,
Ou é da cor do rosto,
Ou então quer abrir-se, neste gosto
De pão com todo o sal que lhe cabia!

Tem narcisos de amor no coração,
Folhas de acanto nos sentidos!
E carícias na mão
A espreitar dos tendões adormecidos!

Toca-se numa pedra e ela treme!
Murmura-se uma prece, e a boca grita!
A rabiça do arado é como um leme
Sobre a terra que ondula e ressuscita!
Quem avoluma a sombra, ou que a teme?
Cada presença é um hino que palpita!
E se na estrada alguém discorda e geme,
Ninguém que vai no sonho o acredita!

Serás tu, Primavera?
Tu, com frutos na rama do futuro,
Com sementes nos pés,
E flores inúteis sobre cada muro,
Contentes só de graça que tu és!

Miguel Torga

domingo, 4 de abril de 2010

Quem não Ama não Vive

Já na minha alma se apagam
As alegrias que eu tive;
Só quem ama tem tristezas,
Mas quem não ama não vive.

Andam pétalas e folhas
Bailando no ar sombrio;
E as lágrimas, dos meus olhos,
Vão correndo ao desafio.

Em tudo vejo Saudades!
A terra parece morta.
- Ó vento que tudo levas,
Não venhas á minha porta!

E as minhas rosas vermelhas,
As rosas, no meu jardim,
Parecem, assim caídas,
Restos de um grande festim!

Meu coração desgraçado,
Bebe ainda mais licor!
- Que importa morrer amando,
Que importa morrer d'amor!

E vem ouvir bem-amado
Senhor que eu nunca mais vi:
- Morro mas levo comigo
Alguma cousa de ti.

António Botto, in 'Canções'

sábado, 3 de abril de 2010

Outras sonoridades... da Aurora...

Paolo Fresu e Uri Caine - Lascia ch'io pianga

Testamento do Poeta

Todo esse vosso esforço é vão, amigos:
Não sou dos que se aceita... a não ser mortos.
Demais, já desisti de quaisquer portos;
Não peço a vossa esmola de mendigos.

O mesmo vos direi, sonhos antigos
De amor! olhos nos meus outrora absortos!
Corpos já hoje inchados, velhos, tortos,
Que fostes o melhor dos meus pascigos!

E o mesmo digo a tudo e a todos, - hoje
Que tudo e todos vejo reduzidos,
E ao meu próprio Deus nego, e o ar me foge.

Para reaver, porém, todo o Universo,
E amar! e crer! e achar meus mil sentidos!....
Basta-me o gesto de contar um verso.


José Régio, in 'Poemas de Deus e do Diabo'

sexta-feira, 2 de abril de 2010

"Où sont les hommes?"... C'est le cas de le dire!

porco trágico I

conheço um poeta
que diz que não sabe se a fome dos outros
é fome de comer
ou se é só fome de sobremesa alheia.

a mim o que me espanta
não é a sua ignorância:
pois estou habituado a que os poetas saibam muito de si
e pouco ou nada dos outros.

o que me espanta
é a distinção que ele faz:
como se a fome da sobremesa alheia
não fosse
fome de comer
também.


Alberto Pimenta, Obra Quase Incompleta, Fenda, 1990

Le Pont Mirabeau, à Paris


Le Pont Mirabeau

Sous le pont Mirabeau coule la Seine
Et nos amours
Faut-il qu'il m'en souvienne
La joie venait toujours après la peine
Vienne la nuit sonne l'heure
Les jours s'en vont je demeure
Les mains dans les mains restons face à face
Tandis que sous
Le pont de nos bras passe
Des éternels regards l'onde si lasse
Vienne la nuit sonne l'heure
Les jours s'en vont je demeure
L'amour s'en va comme cette eau courante
L'amour s'en va
Comme la vie est lente
Et comme l'Espérance est violente
Vienne la nuit sonne l'heure
Les jours s'en vont je demeure
Passent les jours et passent les semaines
Ni temps passé
Ni les amours reviennent
Sous le pont Mirabeau coule la Seine
Vienne la nuit sonne l'heure
Les jours s'en vont je demeure



Guillaume Apollinaire, Alcools (1912)

Calligrammes



Guillaume Apolinaire

Calligrammes


Guillaume Apollinaire

L'OBJET EN POESIE AU XXème : Apollinaire, "La colombe poignardée et le jet d'eau"



Guillaume Apollinaire

Calligrammes


Guillaume Apollinaire


domingo, 28 de março de 2010

Quimeras

Há na minha vida quimeras distantes,
Quais nuvens errantes, em dias atrozes.
Eu corro atrás delas, mas elas, por fim,
Perdem-se de mim, no horizonte, velozes.

Há no meu diário silenciosas dores,
Quais flores que o vento desfaz de manhã.
Com elas me embalo nos dias soturnos,
Dir-se-iam «Nocturnos», como os de Chopin.

Há no meu caminho nem sei bem o quê.
Alguém que me vê e que eu não visiono.
São meus dias passados, meus dias de infância,
Sabendo à fragrância das tardes de Outono.

Saudades, saudades, sentido da vida,
Um dia vivida e que não volta mais.
Meus dias passados, sobre eles me debruço,
No eterno soluço das coisas mortais.

Há na minha vida um viver fictício,
Fogo de artifício, esplendente e altivo.
Eu vejo-o enlevado, um instante fugaz,
Depois se desfaz na noite em que eu vivo.

Há na minha vida ignotas tristezas,
Pequenas certezas a que me apeguei.
Com elas eu vivo, com elas eu morro,
Para meu socorro é que eu as criei.

Quimeras, quimeras, fumo de cigarro,
Cachimbo de barro que um dia quebrei.
Ópio sagrado, num templo budista,
Já longe da vista, e que eu nunca fumei.


Alfredo Brochado, in "Bosque Sagrado"